A pauta da Câmara dos Deputados pode ser travada a partir de hoje, caso o Projeto de Lei nº 3, de 2024, que altera o processo de falências no Brasil, não seja votado. A proposta tramita em regime de urgência, o que obriga a sua votação em 45 dias, a partir da sua apresentação, em janeiro. O PL, que partiu do Ministério da Fazenda, tem sido alvo de críticas desde o início da discussão por não ter sido submetida a um amplo debate. Isso se agravou, no último fim de semana, com o substitutivo apresentado pela relatora, a deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ).
O texto da relatora altera não só as falências, mas também as recuperações judiciais e até as transações tributárias – o que não estava previsto no projeto. Nos últimos quatro anos, o número de recuperações judiciais e falências decretadas pela Justiça cresceu no país. Segundo dados do Serasa Experian, entre 2022 e 2023, o aumento foi de 64% e 9% para recuperações e falências, respectivamente.
No caso do substitutivo, as principais críticas vão para a mudança do quórum mínimo para a convocação da assembleia de credores e a impossibilidade de uma mesma empresa entrar em recuperação contados dois anos após o encerramento da última reestruturação. Hoje, o prazo é de dois anos após a apresentação do plano de recuperação judicial.
Também, pelo substitutivo, não é possível inserir a mesma dívida na nova reestruturação. No relatório, a deputada afirma que a mudança “corrige distorção histórica do abuso do instituto recuperacional, bem-exemplificado pelo ‘interminável’ caso da RJ da Oi”.
Em relação à falência, a relatora manteve os dois principais institutos criados: o plano de falências e o gestor fiduciário. Algo apontado como positivo é o aumento da proteção aos credores trabalhistas, os primeiros da fila a receber, ao elevar o limite de pagamento das dívidas de 150 para 200 salários-mínimos.
Pelo texto, há duas opções para a administração da massa falida: os credores mantêm o administrador judicial nomeado pelo juiz ou nomeiam um gestor fiduciário a partir da maioria dos créditos.
O substitutivo detalha as funções do gestor fiduciário, sua possível responsabilização caso não cumpra as determinações legais. Inova ao criar um mandato de dois anos para o administrador judicial – renovável por igual período se autorizado pelos credores – e ao proibir um mesmo administrador judicial com atuação em mais de uma falência na mesma vara.
O texto da relatora também prevê quarentena de dois anos para o administrador, entre um processo e outro, e um teto para a remuneração. Para o administrador judicial provisório, o limite é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Para o gestor fiduciário e administrador judicial permanente, deve ser de até 3% do valor rateado entre os credores.
Do ponto de vista tributário, a deputada propõe que transações para renegociar dívidas com a Fazenda tenham os maiores descontos permitidos pela legislação atual, de 65% e que sejam passíveis de renegociação os créditos não inscritos na dívida ativa da União.
O objetivo do governo com o PL seria reduzir em dois terços o tempo do processo judicial, que hoje dura em média 16 anos. Outra meta seria triplicar o valor a ser recuperado ao agilizar a venda de ativos – hoje, a recuperabilidade dos créditos sobre o valor avaliado é de 6%, em média, segundo estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, de 2022.
O que justificaria a “urgência” na tramitação do PL, segundo fonte do governo, seria alcançar a redução do spread bancário (diferença entre a taxa de juros cobrada pelo banco e o custo da captação de recursos) do Brasil, atualmente em 19,41 p.p., de acordo com dados de janeiro do Banco Central (BC).
Os quatro especialistas que redigiram o projeto defendem ser preciso reduzir a burocracia nas falências. Para isso, nos cerca de cinco meses de trabalho de elaboração do PL, propõem duas principais mudanças: o plano de falências e a possibilidade de eleição do gestor fiduciário, que nada mais é do que o administrador judicial nomeado pela maioria dos créditos via assembleia geral.
“Em muitos casos o juiz nomeia o administrador judicial de sua confiança, mas que não é da confiança do mercado”, diz o ex-juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, Daniel Carnio Costa, um dos que redigiu o texto original, ao lado dos advogados Pedro Teixeira; Eduardo Munhoz, professor da Universidade de São Paulo (USP), e do procurador da Fazenda Nacional, Filipe Aguiar de Barros.
A eleição do gestor não ser por classe mas por créditos é “suficiente para conferir legitimidade”, diz Munhoz. “É uma vontade majoritária em crédito”, conclui. Para o advogado Pedro Teixeira é também uma questão de alinhamento de interesses, “para ter uma pessoa que possa vender os ativos de forma eficiente e não prolongue o processo”.
O projeto prevê que as mudanças sejam aplicadas a todas as recuperações e falências em curso: são 59.978 ações dessa natureza em andamento no Brasil, além de outros 3.972 casos de convolação da recuperação judicial em falência, segundo o Conselho Nacional de Justiça.
Já o plano de falência tem como objetivo acelerar a venda de ativos, dispensando, em alguns casos, a avaliação de alguns bens e autorizações judiciais específicas. “Quanto mais célere e eficaz for a venda dos bens, mais dinheiro se vai ter e mais rapidamente se consegue pagar os credores”, afirma Carnio. O plano deve detalhar os ativos e passivos da companhia, formas de pagamento aos credores, descontos e como os ativos devem ser vendidos.
Segundo o procurador Filipe Barros, a avaliação de bens muitas vezes atrasa o processo. “O momento de avaliação muitas vezes está muito distante do momento da venda. É inútil avaliar hoje para tentar vender daqui a quatro anos, porque teria que reavaliar. Então quem escolhe o que vai ser avaliado ou não também são os credores”, afirma.
Para o economista professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Joelson Sampaio, ainda é difícil prever o impacto que o PL geraria no spread, mas melhorar a recuperabilidade dos ativos é positivo para o indicador. “A falência aumenta a inadimplência das empresas e acaba afetando o spread”, afirma.
O ex-juiz Carnio, que foi um dos autores do texto original, diz ser “totalmente contrário” ao substitutivo. “A reação é unânime de que não é possível aprovar da forma que está”, afirma. “O que tem de ruim acaba tirando o mérito todo do projeto”, diz.
O principal entrave, que atrasaria os processos de recuperação judicial é a imposição de um quórum mínimo para a assembleia de credores. Hoje, a primeira convocação deve ter, no mínimo, maioria dos créditos em cada classe. Já a segunda reunião é livre de quórum. O novo texto impõe maioria mínima nas duas sessões. “Exigência de maioria para qualquer aprovação inviabiliza qualquer decisão, porque muita gente não participa”, afirma Cárnio.
O advogado Luiz Fernando Valente de Paiva, sócio da Reasset Investimentos em Ativos Estressados, aponta também que o novo texto precisa deixar mais explícitas as responsabilidades e funções do gestor fiduciário sobre o eventual conflito de interesses com credores. “Como ele foi nomeado por um grupo de credores, pode privilegiar esse grupo em detrimento dos demais. É preciso regulamentar possíveis penalidades nesse caso”, diz.
Na visão da juíza Clarissa Somesom Tauk, da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), é preocupante a priorização do pagamento de juros de créditos extraconcursais (que não fazem parte do processo judicial) antes dos credores trabalhistas. “Instituição financeira que financiou o processo passa a receber tanto o capital quanto os juros antes dos credores concursais, como os trabalhistas, então talvez os trabalhistas sequer vão iniciar o recebimento”, diz a juíza. Essa previsão está no texto original do PL e o substitutivo a manteve, mas impôs o limite de juros ser a Selic, a taxa básica de juros.
Procurada pelo Valor, a deputada Dani Cunha não retornou. O BC não comenta projetos em tramitação.
Fonte: Valor Econômico