O número de empresas em recuperação judicial no Brasil continua a crescer e a expectativa é de um volume recorde neste ano. O aumento foi de 10,5% no segundo trimestre, comparado ao mesmo período de 2023. Ao fim de junho, 4.223 companhias negociavam dívidas na Justiça, ante 3.823 no ano passado. Os dados são do Monitor RGF de Recuperação Judicial, da consultoria RGF & Associados, e foram compartilhados de forma exclusiva com o Valor. É a maior quantidade de empresas em recuperação desde o início dos registros pela RGF, há um ano.
O Rio Grande do Sul, que viveu a maior tragédia ambiental de sua história no fim de abril e início de maio, passou a ser o segundo Estado com o maior número de empresas nesta situação: 361 empreendimentos gaúchos de pequeno, médio e grande porte, quantidade inferior apenas a São Paulo, com 1.279 (leia mais ). No mesmo período no ano passado, o Estado ocupava a quinta posição.
A alta taxa básica de juros, a Selic, agora em 10,5% ao ano, aliado a um maior conhecimento dos empresários sobre o instituto são alguns dos motivos para o crescimento, dizem especialistas. Dívidas roladas na época da pandemia da covid-19, em 2020, começaram a vencer no fim do ano passado, outro fator que explica os números. Além disso, empréstimos e linhas de crédito criadas para aquele período já não dão mais conta de estancar o prejuízo.
A Odebrecht Engenharia e Construção (OEC), com dívida de US$ 4,6 bilhões (R$ 25,3 bilhões), e a Polishop, com passivo de R$ 395,6 milhões, foram algumas das principais companhias que buscaram a solução no Judiciário. No caso da OEC, a dívida havia sido renegociada justamente em 2020, com carência de quatro anos e meio. A negociação com credores foi iniciada no fim de 2023 e o processo de recuperação foi ajuizado no fim de junho (processo nº 1100438-71.2024.8.26.0100).
Já a Polishop entrou com o pedido no início de abril, após fechar quase 200 lojas físicas desde 2021. Os principais motivos da crise foram problemas na cadeia produtiva das linhas que comercializa, importadas da China, e queda nas vendas. Ambas as companhias citam a pandemia e a Selic elevada como motivos para as dificuldades (processo nº 1048932-56.2024.8.26.0100).
Segundo Roberta Gonzaga, consultora do RGF, a quantidade de empresas que entrou em reestruturação ainda aumenta, mas em um ritmo menor. “A desaceleração do ritmo foi bem mais significativa. Nos últimos trimestres, tínhamos mais de 200 empresas em recuperação. Nesse, tivemos 141”, diz.
Ela destaca que proporcionalmente ao número total de empresas no país, a crise não é vista de forma acentuada pelo Índice de Recuperação Judicial (IRJ) do Monitor RGF. Ele mostra que 1,84 a cada mil corporações estavam em recuperação no período, de um universo de 2,3 milhões. A proporção é menor que a dos primeiros três meses deste ano, quando o indicador estava em 1,87. É também inferior ao último trimestre de 2023, quando indicava 1,85 empresas em recuperação a cada mil.
Os Estados com os índices mais elevados são Goiás (4,77), Alagoas (4,44), Pernambuco (4,29) e Sergipe (3,6), cenário que não mudou desde a compilação dos dados. Os setores que enfrentam maior dificuldade, a nível nacional, também não mudaram em relação ao último trimestre. O cultivo de cana-de-açúcar ainda ocupa o primeiro lugar no índice, com mais de 24 empresas a cada mil em recuperação, seguido da fabricação de laticínios (16,45), transporte rodoviário coletivo municipal (14,96), construção de rodovias e ferrovias (14,22) e cultivo de soja (12,09).
De acordo com Roberta, matematicamente, a melhora ou piora das regiões ou setores não é tão rápida e tampouco significa uma crise no Estado. “É uma base muito grande de empresas, então o reflexo no indicador ainda precisa ser visto em uma base histórica maior”, afirma.
Goiás, por exemplo, que tem mais empresas do setor agrícola, diz, invariavelmente enfrentaria dificuldades. “Não é que a situação no Estado está ruim, são características diferentes. Assim como na região Norte, que é menos desenvolvida, e está sempre melhor no indicador, mas tem menos empresas de setores que estão movimentando o mercado”, acrescenta.
Ela destaca melhora na quantidade proporcional de empresas que saem da reestruturação e retomam a operação. No segundo trimestre, atingiu 74% dentre o total de 123 que saíram da tutela da Justiça. Outras 28 faliram e cinco mudaram de endereço, foram baixadas ou se encontram inaptas ou suspensas.
Na avaliação de Rodrigo Gallegos, sócio da RGF & Associados, o perfil da dívida das empresas nos pedidos feitos à Justiça é quase sempre o mesmo: a maior parte é endividamento com instituições financeiras. Isso termina sendo um problema para as devedoras, que precisam alongar a dívida e injetar mais capital – que também virá dos bancos. “Se a empresa só tratar o financeiro, continua com um problema gravíssimo, porque não está sanando o que transformou ela a chegar nesse ponto”, diz.
Por isso, para evitar uma recuperação judicial ou sair dela com sucesso, a resposta é “primeiro fazer uma lição de casa interna”, para entender onde ter maior receita. “A empresa tem que começar a trabalhar antes, na causa raiz, fazendo um planejamento estratégico e melhorando a operação, vendendo ou cortando tudo que não é essencial.”
Ele ainda alerta que é preciso ter um “mínimo de caixa” para pedir a recuperação judicial e o ideal é só entrar com o pedido após ter avaliado a estrutura da empresa. A melhora dos números em âmbito nacional, acrescenta, só deve começar a ser vista no fim do ano ou início do ano que vem, se houver queda da Selic. “Se a Selic continuar com reduções e baixar dos dois dígitos, vamos conseguir ver uma queda maior de empresas em recuperação judicial ao invés de crescimento”, afirma Gallegos.
Segundo Gabriela Martines, sócia da área de reestruturação e recuperação de empresas de TozziniFreire, a tendência é que este ano bata recorde. Além dos aspectos econômicos, ela diz que, do ponto de vista jurídico, as mudanças feitas na Lei nº 11.101/2005, em 2020, começaram a ser amadurecidas agora. “Perdeu o estigma negativo e as pessoas passaram a ter mais conhecimento”, afirma a advogada.
Dentre as alterações, as mais usadas são a cautelar antecedente, que antecipa os efeitos da recuperação, o financiamento DIP e a obrigatoriedade do encerramento do processo em até dois anos. “Traz mais facilidade para atrair investidores que não sejam do mercado financeiro tradicional”, completa.
O recorde esperado pode ser explicado pelos números mais recentes da Serasa Experian. Um total de 1.014 empresas pediram recuperação judicial em junho de 2024, um aumento de 71% em relação ao mesmo mês do ano passado, quando 593 empresas entraram com o pedido na Justiça. É o volume mais elevado da série histórica para o período, superando 2016, quando 923 companhias estiveram nessa situação.
Fonte: Valor Econômico