Entes públicos – União, Estados e municípios – têm o dobro de chance de vencer casos tributários, previdenciários ou financeiros no Supremo Tribunal Federal (STF) do que o setor privado. Enquanto o recurso dos contribuintes foi aceito em 26% das vezes entre 2008 e 2024, a taxa de sucesso dos governos foi de 50%. Ao todo, no período, os entes públicos venceram 62% dos julgamentos, por meio de recursos próprios ou da outra parte. E mesmo quando perderam, a derrota foi amenizada: os ministros aplicaram a modulação dos efeitos em 68% dos casos de alto impacto fiscal para restringir o rombo nas contas públicas.
A inclinação favorável ao setor público é mais evidente quando a situação fiscal do país não é boa, ou seja, quando há déficit no resultado primário. Essa correlação começou a ser vista em 2014, quando o país entrou em crise fiscal e passou a gastar mais do que arrecada. Naquele ano, o déficit foi de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB). O auge na taxa de vitórias dos entes federativos foi em 2018, um ano após a aprovação do teto de gastos. Houve novo impulso em 2020, com a pandemia da covid-19, quando o déficit da União aumentou para 9,8% do PIB, o pior da história. Quando houve melhora nesse indicador, em 2022, levando a um superávit de 0,5% em relação ao PIB (mesmo que circunstancial, na visão de economistas), os governos venceram menos.
Essa tendência não é partidária e sim estrutural: persiste desde os governos de Dilma Rousseff, Michel Temer, Jair Bolsonaro e no terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No governo Dilma, a média de vitórias no STF foi de 51,9%. Quando Temer ocupava o cargo, essa taxa subiu para 68,4%. Na gestão Bolsonaro, houve leve recuo para 65,8%, chegando a 55,9% no terceiro mandato de Lula, até então.
As informações estão no estudo “O Judiciário como instrumento de política fiscal? Estresse orçamentário e tomada de decisões judiciais no Brasil”, publicado no início do mês pela revista Public Choice. A pesquisa foi conduzida pelo advogado, economista e pós-doutor em Matemática Eduardo Mattos, da ØX Analytics, a partir do uso de modelos de estatística e machine learning, técnica de inteligência artificial que usa algoritmos para fazer previsões e identificar padrões em dados.
O estudo levou em conta decisões tomadas em recursos com repercussão geral, isto é, que devem ser seguidas por todo o Judiciário, e ações de controle concentrado, como ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs). A pesquisa começa em 2008, pois foi o primeiro ano em que houve decisão em repercussão geral. Foram excluídos os casos repetidos e discussões entre os entes federativos. Com esses filtros, a base de dados ficou com 358 processos, 252 em repercussão geral e 106 ADIs.
Para o pesquisador, o estresse no orçamento é um fator determinante nas decisões. Os julgamentos são mais favoráveis quando a situação fiscal brasileira piora. A taxa de vitória começou a crescer em 2013, atingindo o pico em 2018, depois que foi aprovado o pacote de teto de gastos e o país estava com uma sensibilidade política para a questão fiscal. Depois disso, nunca caiu para o padrão de 2013, acrescenta Mattos, lembrando que há déficit desde então, exceto em 2022, mas há controvérsia.
Na visão dele, isso faz com que o Judiciário seja um componente de ajuste fiscal e valide políticas fiscais de interesse dos governos. Se você conjuga todos esses elementos, que o Estado ganha o dobro de vezes e dois terços das decisões são moduladas em casos de alto impacto, parece que o STF funciona hoje como uma garantia para a execução da política fiscal. Se ela for mal feita, tem chance de ser mantida no Judiciário. E se não for mantida, provavelmente vai ser modulada, afirma.
Essa expectativa de vitória, diz, dá um certo conforto para o Estado. Sinaliza o que para o Executivo? Faça essa política. Ou vou mantê-la ou vou limitar os efeitos ruins para segurar o tamanho do problema. O pesquisador explica que considerou o resultado primário acumulado nos 12 meses anteriores à data de julgamento dos casos para chegar à conclusão.
O economista da Warren Brasil, Josué Pellegrini, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, afirma que as decisões judiciais (no geral, não só do STF) têm atrapalhado a situação fiscal do país. As decisões judiciais têm afetado negativamente as contas públicas, seja pelo aumento da despesa, seja pela diminuição da receita. Ou seja, estão elevando o déficit público. Elas aparecem no orçamento como precatórios. Eles têm aumentado significativamente na última década. O economista cita recente estudo do Insper, noticiado pelo Valor, que mostra aumento do custo com as decisões, um salto de 1% do PIB em 2010 para 2,5% do PIB em 2020. Se conseguíssemos gerar superávit de 2,5% do PIB ao ano, resolveríamos o problema fiscal da União.
Na visão de Pellegrini, os ministros, apesar de não serem especialistas em economia, devem considerar a evolução das contas públicas nas decisões. Pode ser que, de algum modo, interfira e seja mais favorável ao governo, mas isso não impediu que chegássemos a esses números.
O advogado e professor do Insper Ivar Hartmann, ex-coordenador do Supremo em Números, pondera que a taxa de sucesso de qualquer recurso na última instância costuma ser baixa, considerando todos os processos. No geral, o Supremo decide contra quem recorreu, independentemente de quem é parte. Ele achou alto o sucesso de 50% dos entes públicos e 26% do privado. No geral, não chega a 10%.
A tributarista Nina Pencak, sócia do Mannrich e Vasconcelos Advogados, avalia como positivo o número encontrado na pesquisa. A declaração de inconstitucionalidade é exceção à regra e é esperado que os Legislativos e Executivos produzam normas constitucionais. Entendo como uma característica saudável para uma democracia estável o Fisco ganhar mais que os contribuintes. Se fosse o contrário, haveria mais insegurança jurídica.
A advogada, ex-assessora de um ministro do STF e que fez uma tese de doutorado sobre precedentes tributários da Corte, nota que as decisões do Supremo nos últimos anos têm adotado um consequencialismo maior. Na academia, o fenômeno pode ser chamado de “jurisprudência da crise”, visto em outros países, como em Portugal. São decisões tomadas por conta da situação fiscal. O tribunal constitucional português não cria precedentes a serem seguidos, ele alerta que isso foi feito por conta da crise. Em momentos de crise, se criam decisões de crise. Quando o STF cria precedente vinculante, é um consequencialismo exacerbado e não tem fundamento em premissas econômicas concretas.
O professor Ivar Hartmann também lembra que o Estado é o maior litigante na Justiça, o que pode contribuir para maior expertise e gestão dos recursos. Nem o maior escritório do país chega perto do número de recursos que a União leva ao Supremo. E, para ele, o sucesso do setor público está mais associado à capacidade de governismo do mandato do que à economia. Na minha impressão, o Supremo está dando menos vitória quando o governo está com pouco apoio do Congresso Nacional. Lula I teve mais apoio que Dilma, Temer teve mais que Dilma e Lula III está tendo muito pouco apoio. Seria mais complicado para o STF impor derrotas ao governo quando ele tem total apoio do Congresso. E o Supremo sabe disso e age para se proteger, considerando o ambiente político.
Procurados pelo Valor, o STF e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) não deram retorno até o fechamento da edição.
Texto disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/07/21/governos-obtem-no-stf-o-dobro-de-vitorias-que-o-setor-privado.ghtml