A primeira fase da regulamentação da reforma tributária entrou em uma semana decisiva envolta em polêmicas e pontos em aberto. Desde segunda-feira, 18, a Comissão de Sistematização (Cosist), que coordena os 19 grupos técnicos (GTs) do tema, realiza uma força-tarefa em Brasília com o objetivo de concluir as propostas antes da Páscoa.
Uma vez finalizados, os anteprojetos de lei serão entregues ao Ministério da Fazenda e depois encaminhados ao Congresso Nacional – que, por sua vez, decidiu correr por fora e começará a apresentar suas próprias propostas nesta segunda.
Dentre os aspectos controversos – que vêm mobilizando tributaristas, governo e empresários – está o imposto seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, que será cobrado sobre itens considerados nocivos à saúde ou ao meio ambiente. A indústria de alimentos ultraprocessados tenta se blindar da nova cobrança, que já rachou o setor de bebidas alcóolicas (opondo destilados e cervejas; leia mais abaixo) e deixou as cadeias do petróleo e mineração em estado máximo de alerta.
Há, ainda, duros embates sobre a composição da cesta básica nacional, que terá alíquota zero do novo Imposto sobre Valor Agregado (o IVA, que unificará cinco tributos); os regimes específicos, que se multiplicaram em meio às negociações e lobbies na Câmara e no Senado; e até sobre entendimentos fundamentais, como a definição do que é destino, uma vez que o IVA será cobrado onde a mercadoria ou o serviço é consumido, e não no local de produção.
São mais de 70 pontos que requerem legislação complementar e que serão alvo de quatro anteprojetos principais. O mais amplo vai definir as hipóteses de incidência da CBS, o IVA de competência da União, e do IBS, de Estados e municípios – os novos tributos começarão a ser implantados em 2026 e terão vigência integral a partir de 2033. Esse mesmo texto também trará o detalhamento dos regimes específicos, diferenciados ou favorecidos, aspecto fundamental para se definir a alíquota-padrão do IVA.
Como a reforma tem a premissa de ser neutra, do ponto de vista de carga tributária, quanto mais reduzida for a cobrança sobre determinados setores, maior será a tributação geral, para equilibrar a balança. Na última estimativa, ainda em 2023, o Ministério da Fazenda previu uma alíquota próxima a 27,5% – uma das maiores do mundo.
Já o segundo anteprojeto vai tratar do Comitê Gestor do IBS, uma entidade técnica, responsável pela operacionalização das regras definidas em lei complementar; enquanto o terceiro terá o desenho do Imposto Seletivo. E haverá, ainda, um quarto texto, que definirá as regras a serem aplicadas sobre o contencioso administrativo dos novos tributos. Isso não significa, porém, que serão enviados quatro propostas ao Congresso, uma vez que os textos ainda passarão pelo crivo político.
Confira abaixo cinco pontos críticos da regulamentação, que vêm gerando debates acalorados.
1. Alimentos ultraprocessados
Com o imposto seletivo à espreita, a indústria de alimentos alega que o termo “ultraprocessados” não tem respaldo científico e que, num país como o Brasil, com milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, não há que se falar em nova taxa sobre a comida.
“Ultraprocessados são definidos como formulações industriais com mais de cinco ingredientes; então qualquer pessoa que fizer uma broa de fubá aqui sabe que vai ter oito, nove ou dez ingredientes”, ironizou João Dornellas, presidente da União da Cadeia Produtiva dos Alimentos e Bebidas Não Alcóolicas (Uncab), durante audiência no Congresso no início deste mês.
Para Dornellas, que se reuniu na semana passada com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, essa classificação “não para de pé”. “Criaram-se várias narrativas, muita gente ficou famosa. Se você vai nas redes sociais hoje, o que mais tem é terrorismo nutricional; muita gente ganhando dinheiro explorando a falta de conhecimento das pessoas”, afirmou.
Integrantes do Ministério da Saúde, porém, defendem a taxação, destacando que os preços dos ultraprocessados e das bebidas açucaradas passaram a ser menores que os da chamada “comida de verdade”, o que incentiva o consumo. Os técnicos da pasta classificam esses itens de “calorias vazias”, as quais, segundo eles, fazem mal à saúde, contribuem para a obesidade e geram grandes custos ao SUS.
No início de março, foi divulgado o “Manifesto por uma reforma tributária saudável”, pedindo que os produtos ultraprocessados sejam alvo do seletivo. O texto foi assinado por médicos como Drauzio Varella e Daniel Becker, além de personalidades como as chefs Bela Gil e Rita Lobo. A ação é apoiada por organizações como a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
2. Mineração e petróleo
Os setores da mineração e do petróleo também estão em alerta máximo com a regulamentação do Seletivo. Isso se deve ao fato de a lei abrir margem para a cobrança do tributo na extração de recursos naturais não renováveis, com alíquota de até 1% sobre o valor de mercado do produto extraído.
Empresários dos segmentos reclamam que a cobrança vai onerar o setor produtivo, com possibilidade de taxação em mais de um ponto da cadeia, inclusive na exportação – o que seria um contrassenso em relação aos princípios da reforma.
Para as mineradoras, o essencial é barrar essa cobrança nas vendas externas, com o objetivo de preservar a competitividade do produto brasileiro, sobretudo do minério de ferro – responsável por quase 60% do faturamento do segmento. Já as empresas de óleo e gás buscam estabelecer redutores para a alíquota do tributo, além de possibilidades de isenção completa.
As refinarias independentes, responsáveis por 20% da capacidade de produção nacional, também acompanham de perto essa regulamentação. Elas temem que uma isenção do seletivo apenas na exportação crie mais um incentivo tributário à venda externa do petróleo, o que prejudicaria o mercado interno.
“Desonerar somente as exportações, sem olhar para as indústrias brasileiras, será criar mais um incentivo à desindustrialização. No caso dos combustíveis, continuaremos a exportar petróleo e importar gasolina e diesel, em um país que é autossuficiente na extração”, afirma Pedro Passos, consultor jurídico da Refina Brasil, associação que reúne os refinadores privados.
3. Cesta básica
A reforma criou a chamada cesta básica nacional, com alíquota zero do IVA, mas adiou a sua definição – o que tem provocado uma forte disputa entre setores e entidades empresariais nos bastidores do Congresso e dos GTs.
O segmento de supermercados, por exemplo, propõe foco em “alimentação saudável”, mas refuta a possibilidade de uma “cesta mínima”. Para os representantes do setor, é necessário garantir uma gama diversificada de itens, que assegurem a “satisfação de qualquer cidadão”.
Nesse sentido, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) apresentou uma minuta com 17 categorias de alimentos, incluindo carnes, ovos, laticínios, frutas, legumes, vegetais, farinhas e massas alimentícias. A associação também vê necessidade de atender às diversidades regionais, e sugere itens como farinha de mandioca e tapioca, açaí, erva-mate e pamonha.
A indústria agropecuária também participa do debate e quer dar prioridade aos produtos in natura, que atendam ao conceito “do campo à mesa”. Mais de 30 associações do agronegócio fecharam consenso em torno de outra lista, com aproximadamente 40 produtos, a qual foi entregue ao GT responsável.
Em entrevista ao Estadão, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), reforçou o que se prevê desde a discussão da emenda constitucional: que o assunto vai gerar uma nova “guerra de lobbies” dentro do Congresso.
Outro ponto que gerou incômodo aos setores envolvidos no debate foi o fato de o presidente Lula ter editado um decreto, em 6 de março, que instituiu uma cesta básica de alimentos saudáveis no País. Como mostrou o Estadão, a medida foi vista como uma forma de o governo se antecipar e atravessar o trabalho da regulamentação, ainda em curso.
Há ainda a possibilidade de se ampliar o conceito de cashback (devolução de impostos aos mais pobres) para o consumo de alimentos, como vem sendo avaliado pelo secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy. O sistema já está previsto para as contas de energia e gás de cozinha, mas poderá ser expandido a outros setores, como saneamento básico e alimentos.
O tema, que sofre resistência no segmento supermercadista, é visto como fundamental pelo governo para garantir o aspecto distributivo do novo sistema de impostos.
4. Caipirinha X cerveja
Com o slogan “Álcool é álcool”, a indústria de bebidas destiladas abriu um embate público com os fabricantes de cervejas em torno da regulamentação do Imposto Seletivo. A investida tem o objetivo de evitar uma taxação diferenciada, como já ocorre atualmente com o IPI, de competência federal, e o ICMS, estadual.
“Ter um imposto que possa ser regressivo ou progressivo fará com que iguais sejam tratados como desiguais”, afirmou o diretor de relações com o mercado do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), Carlos Lima, durante audiência no Congresso, no início do mês. Ele se referia à possibilidade de uma cobrança gradativa, baseada no teor de álcool.
A indústria da cerveja, porém, rebate os argumentos e cita práticas internacionais. “(Tributação por teor alcoólico) é orientação da OCDE, da OMS e do FMI, inclusive de exemplos com casos de sucesso de vários países, como Rússia, Inglaterra, Espanha e Austrália”, afirmou Márcio Maciel, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja, na mesma sessão.
5. O que é destino?
A pergunta parece simples, mas vem mobilizando técnicos, advogados, governadores e prefeitos. Isso porque a resposta vai balizar o novo sistema tributário, que muda a taxação da origem, onde a mercadoria é produzida, para o destino, onde é consumido – e, consequentemente, influenciar a arrecadação de Estados e municípios.
Por exemplo: uma empresa tem matriz em São Paulo e concentra sua contabilidade na capital paulista, mas possui filiais espalhadas pelo País. Ela compra, por meio da sede, materiais necessários à sua atividade e distribui aos demais estabelecimentos. Pela lei, onde se dará o consumo desses itens? Na matriz, que pagou por eles? Ou nas filiais, que são o destino final?
Há, ainda, questões importantes ligadas ao consumo de pessoas físicas e ao comércio eletrônico. Uma pessoa que mora em Brasília e faz uma compra de alto valor em São Paulo terá a sua compra e consequente tributação atrelada à capital paulista, onde realizou a aquisição, ou à capital federal, onde reside?
Interlocutores ouvidos pelo Estadão afirmam que um dos caminhos em discussão prevê a obrigatoriedade de CPF na nota fiscal em compras acima de determinados valores. Essa sistemática já é aplicada no Estado de Mato Grosso, onde os consumidores precisam informar o número do documento em compras iguais ou superiores a R$ 1 mil. Dessa forma, seria possível determinar o local de residência da pessoa física e direcionar a arrecadação para essa localização. O tema, porém, segue em debate.
Fonte: Estadão