A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) impediu o Ministério Público de pedir diretamente à Receita Federal dados fiscais de contribuintes para usar em investigações e ações penais. Por unanimidade, os ministros entenderam que é preciso autorização judicial para obter as informações, protegidas por sigilo pela Constituição Federal.
A decisão reforça entendimento firmado pelo STF, em repercussão geral, no ano de 2019, de que só a Receita pode enviar relatórios e informações sobre os cidadãos. Mas o contrário não se aplicaria – ou seja, não poderia encaminhar dados solicitados.
A decisão da 2ª Turma diverge de outra recente, da 1ª Turma, de relatoria do ministro Cristiano Zanin (Rcl 61944), segundo especialistas. Ela permitiu à polícia pedir dados bancários diretamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Para advogados, como a proteção constitucional é a mesma, o entendimento da 2ª Turma deveria ser adotado pelos ministros da 1ª Turma.
Criminalistas também dizem que as polícias, delegados e Ministérios Públicos costumam usar esse “caminho mais curto” de requisitar informações aos órgãos fiscais sem intermédio de juízes. Contudo, essa saída, acrescentam, pode infringir direitos garantidos por cláusula pétrea da Constituição, como à vida privada e à intimidade, previstos no artigo 5º. Algumas investigações, sobretudo as que envolvem lavagem de dinheiro, destacam, seriam baseadas nesses pontos.
No agravo julgado pelo STF, o Ministério Público Federal (MPF) defendeu que a Corte Superior já se manifestou “reiteradamente, no sentido de reconhecer a licitude do compartilhamento de dados entre autoridades públicas”. O MPF argumentou que o artigo 8º da Lei Complementar nº 75/1993 “dispõe sobre o poder requisitório do Ministério Público, sendo vedada a oposição, sob qualquer pretexto, de exceção de sigilo sobre dado que lhe deva ser fornecido”.
O Valor procurou o MPF, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Civil de São Paulo, que não comentaram oficialmente a questão. Em nota, a Polícia Civil disse que “atua conforme as leis vigentes, em questões exclusivamente de Polícia Judiciária”. Já a Receita não comenta decisões judiciais. Uma fonte da PF informou que a instituição não usa esse caminho para obtenção de provas. “A gente sempre pede [os dados fiscais] via judicial. A gente sabe que se pedir diretamente para a Receita, vai ser anulado.”
Os ministros da 2ª Turma negaram um segundo recurso do MPF e mantiveram decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que declarou nulas as provas obtidas pela acusação. Nesse caso, que está sob sigilo e envolve suposto crime de estelionato e falsidade ideológica, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) havia entendido ser legal o método usado pelo MPF, que pediu diretamente ao superintendente da Receita seis declarações de Imposto de Renda do acusado, familiares e de diversas pessoas jurídicas.
No voto, o relator, ministro Edson Fachin, lembrou do Tema 990 (RE 1055941), em que foi permitido ao Fisco compartilhar relatórios de inteligência financeira com o MP sem aval judicial. O inverso, porém, não se aplica.
“Em que pese o Supremo Tribunal Federal tenha autorizado o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira da UIF e de procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal, não permitiu que o Ministério Público requisitasse diretamente dados bancários ou fiscais para fins de investigação ou ação penal sem autorização judicial”, afirma Fachin, no voto (RE 1393219).
Ana Carolina Piovesana, sócia do Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados e especialista em direito penal econômico, que atuou no caso, diz que a decisão não proibiu o Ministério Público de ter acesso às informações fiscais, apenas reforçou limites previstos na Constituição. “Os dados de natureza fiscal podem ser acessados, desde que exista autorização da Justiça”, afirma.
Ela também entende que o STF garante que apenas informações necessárias à investigação ou ao processo criminal serão acessadas. “A intervenção judicial funciona como uma espécie de filtro, uma barreira, impedindo que ocorram devassas indiscriminadas na vida privada dos cidadãos”, diz Ana Carolina.
Segundo a criminalista Luiza Oliver, sócia do Toron Advogados, o resultado do Tema 990 provocou muitas discussões e interpretação divergente pelo MP. “A Receita enviar relatório sem decisão judicial é completamente diferente do que o MP está fazendo de, no curso de uma investigação ou de uma ação penal, deixar de pedir quebra de sigilo e dar um ‘by pass’, tangenciando determinações legais que resguardam o sigilo fiscal para pedir acesso direto a declarações de imposto de renda”, afirma. “Não é uma via de mão dupla.”
Na visão dela, o entendimento de Fachin está correto, mas há um contrassenso com a decisão da 1ª Turma, de relatoria do ministro Zanin. “O STF está entendendo que existe um resguardo maior nas informações fiscais do que nas informações bancárias, que têm a mesma proteção”, avalia.
Ela reforça que o Judiciário precisa atuar como mediador nessas situações, ponderando se há indícios suficientes para determinar a quebra do sigilo fiscal ou bancário. “Senão, ninguém tem mais sigilo nenhum e nem a intimidade preservada”, conclui.
O advogado André Coura, sócio e fundador do Coura e Silvério Neto Advogados, afirma que a investigação criminal, nos últimos anos, tem sido muito centrada em questões patrimoniais e os órgãos de acusação nem sempre têm obtido autorização judicial para acessar os dados. “O fato chega e, muitas vezes, a investigação já começa com ofício à Receita Federal, ao Coaf, tudo de uma vez”, diz.
Para Coura, sem o aval do juiz, o que se tem é uma “carta branca” para as instituições de investigação. “Tem se usado o argumento do Tema 990 como uma autorização lato sensu para o MP e para a polícia requisitarem essas informações a bel prazer”, afirma.
A solução para esse tipo de medida, acrescenta, é entrar com um habeas corpus para desentranhar as provas obtidas de forma ilegal. Como na primeira e segunda instâncias, as decisões têm admitido o aproveitamento dos dados, “tem que buscar subir para o STJ e STF”. Se a acusação for baseada apenas nessas provas, diz Coura, o caminho é o arquivamento do processo criminal ou a nulidade da investigação. “É o preço que se pega pela democracia”, completa.
O STF deve retomar a discussão sobre o compartilhamento de dados fiscais para fins penais quando julgar uma ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), de relatoria do ministro Dias Toffoli. Ainda não há data para julgamento (ADI 7624).
Fonte: Valor Econômico