Um impacto potencial de R$ 169,24 bilhões foi afastado pela União em julgamentos realizados, no primeiro semestre, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Esse era o valor total estimado para 10 processos, que foram analisados de forma favorável aos pedidos da Advocacia-Geral da União (AGU) e Procuradoria-Geral da União (AGU) e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
Acordos firmados em outros três casos também são considerados vitórias para a União. Somados, os desembolsos serão de R$ 5,5 bilhões, valor inferior ao previsto inicialmente – não divulgado pela União. Os dados constam em levantamento realizado pelos órgãos a pedido do Valor.
A negociação tem sido vista na AGU como um ativo nos processos. “Computamos como vitória algumas coisas que têm negociação”, diz Flavio José Roman, adjunto do advogado-geral da União. Na AGU, acrescenta, a brincadeira é de que o órgão não perde, ou ele ganha ou negocia.
Para a AGU, o movimento de negociação cria uma boa vontade nos tribunais em relação a tentar pautar as ações. “Não temos dúvida disso. A gente sempre deixa esse sinal claro. Essa bandeira de que estamos sempre dispostos a negociar”, afirma Roman.
Há, no órgão, a percepção de que o Judiciário está se preocupando mais com o impacto econômico das decisões, o que tem justificativa legal e uma mudança de postura dos próprios magistrados. Na lei de introdução às normas do direito brasileiro (Lei nº 13.655, de 2018) há a determinação para que os juízes, principalmente quando forem decidir com base em valores jurídicos abstratos, analisem as consequências das decisões judiciais.
“Isso exigiu um esforço dos magistrados para terem essa perspectiva. Hoje temos o primeiro presidente do Supremo [ministro Luís Roberto Barroso] que tem um assessor econômico para se preocupar com essa questão”, diz Roman.
A determinação da Lei nº 13.655/ 2018 aumentou na AGU a preocupação em relação aos levantamentos de valores das causas. Porém, existem críticas, especialmente por parte de advogados, de que os números são inflados. Na “revisão da vida toda”, discussão previdenciária que a União venceu, as estimativas de impacto do governo federal e dos contribuintes eram bem diferentes.
“Não sabemos como esses números são calculados”, critica Maria Raphaela Matthiesen, sócia do Mannrich e Vasconcelos Advogados. Segundo a advogada, são estimativas informadas no anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e levados aos ministros nos julgamentos, mas não há transparência sobre fontes e métodos.
O economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, auditor licenciado do Tesouro Nacional, explica que os impactos potenciais que constam na LDO costumam ser bastante superiores aos efetivos porque a Receita Federal, ao calcular os números, considera que todos os contribuintes que teriam direito entrariam na Justiça, o que não é verificado na prática.
Maria Raphaela lembra que, recentemente, o STJ começou a colocar um limite temporal às suas decisões, a chamada modulação, o que, em geral, mostra preocupação com o impacto econômico de uma decisão – pela tentativa de reduzir o efeito retroativo.
Nos casos destacados nos riscos fiscais, não há itens que foram julgados no primeiro semestre a favor dos contribuintes. A advogada localizou entre os julgados tributários no primeiro semestre, uma vitória e uma “meia vitória” dos contribuintes.
A vitória foi na decisão do STJ de que o ICMS-ST não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins devidos pelo contribuinte substituído no regime de substituição tributária progressiva. Não há estimativa de impacto para o caso (REsp 1896678 e REsp 1958265).
A “meia vitória” foi em caso que a União conta como vitória, a da inclusão da receita decorrente da locação de bens imóveis na base de cálculo do PIS, tanto para as empresas que tenham por atividade econômica preponderante esse tipo de operação como para aquelas em que a locação é eventual e subsidiária ao objeto social principal.
Para a advogada, se a atividade não estiver no objeto social, pode escapar da tributação. “No julgamento, o STF entendeu que haverá incidência da contribuição, mas limitou a tese firmada aos casos em que a locação é objeto social da empresa. Locações realizadas como atividade eventual e subsidiária não serão submetidas à tributação”, diz.
Os resultados favoráveis à União nos tribunais superiores também fazem parte de uma estratégia do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que desde a posse tem observado os riscos fiscais escondidos nos tribunais. Quando o ministro identifica um processo com impacto relevante para as contas públicas, ele entra em cena – com o auxílio da AGU e da PGFN – para negociar diretamente com os ministros.
A atuação gerou vitórias relevantes no primeiro semestre. Na última semana de julgamentos antes do recesso, o STJ julgou um conjunto de processos com efeito repetitivo (em que é fixada uma tese que deverá ser seguida pelas instâncias inferiores) de forma favorável à União.
No STF, o caso de destaque mais recente foi o julgamento do processo sobre a remuneração das contas do FGTS, que estava com placar vitorioso para o contribuinte até o pedido de vista, e depois foi revertido, garantindo aos cotistas apenas a remuneração pela inflação. O processo não foi computado como vitória pelo governo, mas é considerado como um exemplo dentro da estratégia de negociação adotada (ADI 5090).
A advocacia negociou com centrais sindicais um acordo e apresentou ao STF a proposta de correção dos recursos do fundo apenas pela inflação. Roman destaca que o objetivo era mostrar para o próprio trabalhador e para seus representantes que o aumento de remuneração do fundo afetaria políticas públicas que estão diretamente ligadas às pessoas com menor renda.
“Não basta persuadir os ministros, tem que persuadir também as pessoas. Então realmente foi fundamental o apoio das centrais [sindicais]”, afirma o vice-AGU. Não há uma estimativa do impacto a partir da decisão firmada.
Os julgamentos do primeiro semestre seguem a tendência de 2023, em que a União teve um grande ano nos tribunais. No STJ, por exemplo, todos os processos tributários que constam no Anexo de Riscos Fiscais da LDO foram julgados e de forma favorável, incluindo a tributação de benefícios fiscais – mantida após recurso apresentado pelos contribuintes. Apenas na esfera tributária, por meio de julgamentos em 2023, foram evitadas perdas de R$ 195,6 bilhões.
O economista Tiago Sbardelotto afirma que as duas estratégias adotadas pelo governo – sensibilizar o Judiciário quanto aos potenciais impactos negativos nas contas públicas e fazer acordos naqueles processos em que a derrota da União é provável – têm mostrado resultado. “Mesmo nos processos em que a União teve decisão desfavorável, os efeitos foram bastante reduzidos”, avalia.
Os acordos, diz o economista, permitem ao governo reduzir o custo com juros e fazer os pagamentos até 2026 via precatórios, fora do limite de despesas e da meta fiscal. “Entendemos que o resultado final de ambas as estratégias é reduzir o impacto fiscal no médio prazo, quando as regras fiscais serão mais restritivas. É um avanço, sem dúvida. Mas é preciso também se antecipar e combater a ‘indústria’ de judicialização de benefícios, que tem crescido significativamente nos últimos anos”, diz Sbardelotto.
Segundo Priscila Faricelli, sócia do Demarest Advogados, na pandemia o julgamento de leading cases tributários cresceu, por meio dos julgamentos virtuais. Para a advogada, hoje, a maioria dos casos vem sendo julgada de forma contrária aos pedidos dos contribuintes.
“Não há dúvidas de que, há pelo menos dez anos, a PGFN aprimorou a forma de atuação nos tribunais superiores”, afirma. Por outro lado, acrescenta, os julgadores, como agentes políticos, têm se preocupado mais com o orçamento. “A maior demonstração dessa amarra com questões orçamentárias é o próprio perfil das modulações, que sempre vemos terem a tendência a preservar o orçamento.”
Fonte: Valor Econômico